As
cinzas de Gil, o “presidente”, repousam na entrada do seu bar
predileto em Copacabana
Por
Felipe Sales
Publicado
em Carta Capital
O
número 698-B da Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, é mais que o
endereço de um legítimo pé-sujo carioca, com direito a ovos
coloridos, azulejos engordurados e cardápio de placa amarela na
parede. São pouco mais de cinco metros quadrados preenchidos por
nove mesas, muitas sombras e excessivos decibéis, graças ao embate
frenético de ônibus, carros e multidões a transitar a dois metros
do balcão. Dia sim, outro também, é ali que um grupo de amigos,
moradores da região, se encontra há mais de 50 anos. Mas Gilberto
Antônio de Lima e Souza, o querido Gil, ou simplesmente
“presidente”, achou pouco. E hoje ele jaz eterno, em forma de
cinzas, num vaso prostrado na porta da birosca, ornamentado não por
flores, mas por guimbas regadas a doses que, salvo engano, iriam
“para o santo”.
Gil
chegava sempre por volta de meio-dia, saudava seu Juan, o dono do
bar, e se derramava na mesa 1, ao lado do vaso que seria seu túmulo,
onde nenhum amigo ousa sentar novamente. Tinha 1,90 metro de
paradoxos bem distribuídos: apesar do corpanzil imponente, delineado
por um abdômen definido em barris de chope, erguia copos e talheres
com a delizadeza de uma bailarina. Com uma voz calejada em ressacas,
falava cada palavra sem pressa, quase sempre sob um riso frouxo entre
os lábios, e agregando, assim, até os seres mais moribundos que por
lá circulavam. “Ninguém é chamado de presidente à toa...”,
lembra seu Juan, sorumbático como de hábito, até uma lembrança
lhe escapar um sorriso: “Ele nunca pedia fiado”.
Mineiro
de Belo Horizonte, o presidente desembarcou no Rio de Janeiro aos
três anos. E foi nas areias de Copacabana, como jogador de vôlei,
que arrebanhou amigos que o acompanhariam pela vida, e pela boemia,
afora. Campeão brasileiro pelo Botafogo, tornou-se benemérito da
Federação de Vôlei do Rio em 1959, ao lado do hoje poderoso
presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman. Até
que uma contusão no joelho e uma crescente demanda por esbórnia, o
fez migrar para os azulejos gastos do Bar Barta Ribeiro, onde
passaria boa parte da vida. E, agora, da morte.
O
perpétuo boêmio tornou-se funcionário do Detran. Levou uma vida
confortável, garantida ainda por supostos investimentos
bem-sucedidos na Bolsa de Valores. Tempos depois veio o casamento e o
nascimento dos dois filhos, obrigando-o a trocar a vizinhança do
botequim por uma simpática vila na Gávea, onde, pela ironia do
acaso, calhou de ser vizinho de Vinícius de Moraes. O poetinha,
sempre que lhe faltava água de beber, buscava com o amigo o “cão
engarrafado”. “Podia ser de manhã ou de madrugada”, conta
Giuliano Chediak, filho caçula do presidente. “Meu pai gostava
tanto dele que até escondeu o motivo de o meu cachorro ter
desaparecido. Achávamos que ele tinha fugido. Até que, muito tempo
depois, vi numa revista a foto do meu cachorro com Vinícius passando
uma tarde em Itapoá.”
Nessa
época, ele começou a frequentar outras rodas de amigos e até fez
pontas em alguns filmes, entre eles os clássicos Navalha na Carne e
Vinte Passos para a Morte. Mas nunca deixou de frequentar seu
verdadeiro lar. Gil chegava ao botequim, aninhava-se em seu trono e
papeava com um que chegava, outro que ia. Às vezes, pedia a seu Juan
para assumir a cozinha e preparava um arroz árabe para a galera. Num
dia qualquer, passava no bar e armava uma caravana para recôncavos
do Rio e do mundo. Certa vez, decidiu ir para Las Vegas. Convocado
por colegas de trabalho, deputados e delegados, o presidente não
deixou o país sem antes passar no “seu” botequim e colher mais
um amigo. A turma se esbaldou na jogatina sem se conformar com Gil,
que cruzara as Américas apenas para sentar e beber uísque.
Diante
de tanta dedicação à boemia, o casamento naufragou, enquanto Gil,
de volta a Copacabana, se afogou ainda mais nos copos de cerveja e
nos corpos de meninas atrevidas. Gostou tanto do negócio que virou
sócio de um estabelecimento especializado no ramo. Numa das avenidas
mais famosas de Ipanema, ao lado de uma das creches mais nobres da
cidade, a Chapeuzinho Vermelho, nasceu a “Le Loup”, “o lobo”
em francês. Nada que incitasse à pedofilia, mas Gil não podia
perder a piada.
Em
seus ótimos anos, o presidente dizia que morreria antes dos 70. Até
que, no inverno de 2009, aos 69 anos, foi ao boteco e convocou a
turma para um fim-de-semana em Mury, na Região Serrana do Rio, tudo
por conta, como sempre. Comeram e beberam como se não houvesse
amanhã, até que o presidente, estranhamente, sentiu a alvorada.
Pediu licença, deixou o restaurante e voltou para seu quarto. Só
foi visto no dia seguinte, arrumando as malas em meio a vômitos e
sangue. Voltaram para o Rio de Janeiro em silêncio, direto para o
hospital.
O
presidente até deu uma segurada, o problema é que todo ano tem
carnaval. E Gil fazia questão de viver até a última dose: bateu
ponto na banda de Ipanema e voltou a pé até Copacabana, com paradas
estratégicas para abastecimento no Zig Zag, Bar do Biro, Devassa e,
claro, seu bar de estimação.
Nessa
época, já não falava com os filhos há muito tempo, a ponto de, um dia Giuliano encontrá-lo na rua e ter de se apresentar. Quis o
destino tentar, pela última vez, aproximar pai e filho, apesar de o
fígado combalido liberar toxinas que causavam dor e delírio. Mas
nem no hospital, já muito magro e morimbundo, Gil esboçou qualquer
remorso por seus descaminhos. “Nesta vida, você tem que encarar o
mundo, e eu encarei”, disse a Giuliano. E fez o pedido derradeiro:
suas cinzas deveriam ser deixadas no Bar Barata Ribeiro, sem choro
nem vela.
E
assim foi. Em 10 de abril de 2010, um mês depois do carnaval, o
presidente encontrou a morte. E numa tarde de outono, pelas mãos de
seu filho, retornou à boemia eterna.
As cinzas dele ainda estão no bar?
ResponderExcluirEsta matéria foi publicada na Carta Capital em 2012 e nesta época estavam. Provavelmente ainda estão.
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