por Marcelo Bortoloti
publicado em
http://www.olobo.net/index.php?pg=colunistas&id=474
Tudo ia bem naquela mesa do bar Antônio’s, na antiga Ipanema dos anos 60, até Ronald de Chevalier, o Roniquito, começar a se estranhar com o amigo e cartunista Otelo Caçador.
Briga
de bêbados, e como tal, sem motivo aparente nem conseqüências para
o dia seguinte. A gota d’água foi quando Roniquito chamou o colega
de imbecil. O outro partiu para a agressão. “Os dois caíram no
chão, mas era uma briga em câmera lenta, um tédio”, lembra o
jornalista e escritor Fausto Wolff, testemunha ocular do ocorrido.
Otelo, mais forte, levou a melhor e encheu o adversário de pancadas.
Subiu em cima dele, e com o pé na sua garganta, perguntou: “E aí,
chega ou quer mais?”. E Roniquito, atrevido: “Mas é claro que
chega seu imbecil”.
Era
a insolência típica desta figura mitológica que morreu
tragicamente em 1983, deixando para trás uma fama de bêbado
selvagem, dono de um ‘temperamento bélico’ como descreveu Ruy
Castro, e que ofendia a todos pelo simples prazer da discórdia.
Economista
e intelectual, Roniquito não deixou nenhuma obra escrita, a não ser
uma série de extravagâncias contadas e recontadas pelos cronistas
da época. E justamente por ter sido o bêbado que foi, ele ganhou no
mês passado uma biografia, escrita pela irmã, Scarlet Moon de
Chevalier, jornalista e ex-mulher do cantor Lulu Santos.
“Dr.
Roni e Mr. Quito” (Editora Ediouro), traz no título uma piada do
cronista Carlinhos de Oliveira, que definia Roniquito como uma versão
nacional de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do livro “O Médico e o Monstro”
de Robert Stevenson. Sóbrio era uma figura doce e tímida, bêbado
virava um crítico feroz, um infame, ou simplesmente um cara
engraçado, dependendo do ponto de vista.
Ele
próprio tinha consciência de suas duas metades. Às vezes, ao
entrar num botequim, ainda de boca seca, se anunciava: “Senhoras e
senhores, aqui Ronald de Chevalier. Dentro de alguns instantes...
Roniquito”. Bastavam algumas doses de uísque.
Certa
vez, altas da madrugada, foi o segundo que se virou para o amigo
Fernando Sabino, que também bebia no bar Antônio’s: “Ô Sabino,
quem é melhor, você ou o Nelson Rodrigues?”. O escritor,
modestamente, respondeu que era o Nelson, claro. E Roniquito: “E
quem é você para julgar Nelson Rodrigues?”
Nasce
um boêmio
Carioca
por adoção, Ronald Russel Wallace de Chevalier nasceu em junho de
1937, em Manaus. Filho de médico ilustre, veio com a família logo
cedo para o Rio. Os pais tinham dinheiro suficiente para colocá-lo
nos melhores colégios, e ele foi amigo de infância de Walter Clark,
Jô Soares e Ivan Lessa.
Ronald
possuía uma inteligência matemática, decidiu cursar economia. Foi
orador da turma e um dos pupilos de Mário Henrique Simonsen, o
antigo Ministro da Fazenda. Não demorou muito para demonstrar sua
habilidade para o álcool e a balbúrdia. O primeiro pileque foi aos
10 anos de idade, um verdadeiro prodígio.
Logo
que Ferreira Gullar chegou ao Rio de Janeiro, por volta de 1952, o
poeta foi a um debate sobre arte contemporânea. Um dos palestrantes,
um paraguaio, falava de seu interesse pelo aspecto metafísico da
arte. Neste momento um jovem magro, do fundo do auditório, pediu um
aparte. O palestrante concedeu, e ouviu o seguinte: “Eu só queria
dizer que a única coisa metafísica que eu conheço é o cu”.
O
paraguaio perdeu a fala. “Ele foi tirado da sala, carregado por
dois seguranças, e continuou gritando ‘é o cu é o cu’ até a
saída. Eu perguntei quem era aquele, e me responderam ‘é o
Roniquito, ele vive criando confusão em todo canto’”, conta
Gullar, que mais tarde viria a ser amigo da fera. Foi uma das
primeiras manifestações do tipo bravio, que como se vê, não tinha
critérios.
Piada
de salão
Baixinho
e franzino, Roniquito possuía coragem demais para seu tamanho,
apanhava com regularidade. Sobreviveu tanto tempo pois nunca saia do
circuito Ipanema-Leblon, onde era conhecido. Quando chegava em um bar
lotado, onde não havia nenhum amigo, costumava dizer: “Este lugar
está cheio de ninguém”. Surgia alinhado e dali a pouco estava
completamente descomposto, com o enorme queixo apontado para o alto,
marca registrada do seu atrevimento.
“Ele
chegava a ser inconveniente, mas no fundo era um gozador”, defende
Ferreira Gullar. O cartunista Jaguar, 74 anos, é outro sobrevivente
daquela brava geração etílica. “Roniquito era um suicida”,
define. “Quando não tinha ninguém para esculhambar, esculhambava
o copo”, exagera. Certa vez estavam os dois sentados no bar Degrau,
depois de extensa via-sacra pelos botecos da Zona Sul, quando se
aproxima da mesa uma madame falando maravilhas de um espetáculo que
acabara de assistir, do coreógrafo Maurice Béjart. “Eu amo
Béjart, ele é divino”, dizia. Roniquito, possuído, desbancou a
granfina: “Eu acho Béjart uma merda, eu gosto é de Fudet”.
Muitas
histórias que passaram de boca em boca ganharam mais cores que
veracidade. O ator e cineasta Hugo Carvana, também integrante do
bando, homenageou Roniquito no seu filme “Bar Esperança”, no
papel de um bêbado, é óbvio, vivido pelo ator Antônio Pedro. “A
gente nunca sabe quais histórias são verdadeiras. Roniquito era um
personagem folclórico, e o personagem às vezes é maior que a
pessoa”, diz.
Apesar
de azedo quando embriagado, o boêmio era dono de grande talento para
a esculhambação, e estava sempre cercado de amigos. Por ocasião de
sua morte, Paulo Francis publicou um artigo na “Folha de São
Paulo”, contando a única vez em que fora destratado por ele.
Francis estava numa mesa de bar com amigos, e elogiou o filme
“Teorema” do cineasta Pier Paolo Pasolini. Quando se levantou
para ir ao banheiro, Roniquito o segurou pelo braço, com essa:
“Custou, mas confessou o homossexualismo. Hem?”. Claro que apesar
de toda a graça, foi com justiça considerado por muita gente como
um tipo insuportável.
O assessor
Ao
lado de toda esta atividade boêmia havia também uma produção
intelectual relativamente intensa. Ronald de Chevalier era um
erudito, altamente versado em poesia e música clássica, e chegou a
cometer alguns sonetos. Como economista, trabalhou na Comissão
Econômica para a América Latina, no antigo BNH, passou pela Rede
Globo e depois pelo Ministério da Fazenda.
Na
TV começou em 1969, quando a Globo se despontava como uma potência.
Ronald foi contratado pelo amigo Walter Clark, chefão da emissora na
época, embora seu cargo nunca tenha ficado muito claro. Foi ele quem
inventou a expressão ‘aspone’, que mais tarde entrou no
Dicionário Houaiss: "Indivíduo que exerce um cargo sem função
real ou útil". Na sua origem, ‘aspone’ é redução de
assessor de porra nenhuma, como Roniquito se definia.
Claro
que era um exagero, só para não perder a piada. A cantora Nana
Caymmi, amiga inseparável, defende o figurão. “Ele era um homem
de idéias brilhantes, e ajudou muito o Walter Clark na época.
Naquele clã da Globo não ficava nenhum burro”, decreta. Ruy
Castro tem outra versão: “De certa forma, Roniquito era o que
Walter Clark, com todo o seu poder, gostaria de ser: fino de berço e
grosso por opção. Walter era o contrário”.
Scarlet
Moon entrevistou cerca de 50 pessoas entre amigos e conhecidos da
época para compor a biografia. Ela fala da infância feliz, dos
colegas de escola, dos casamentos e da difícil convivência com o
alcoolismo. Por conta do temperamento pirotécnico, a verdade é que
o boêmio nunca foi muito bom com as mulheres. Ainda assim, foi
casado duas vezes e teve três filhos. “Roniquito sabia que não
era um sujeito muito bonito, e isto o irritava um pouco”, sugere
Fausto Wolff, que dividiu um apartamento com ele em Ipanema. Nana
Caymmi tem uma avaliação mais branda: “Eu era uma admiradora,
ficava ao lado dele fascinada com sua inteligência e com as coisas
que ele dizia”, conta. Claro que de noite, já com a cara cheia,
Roniquito surgia no Chico’s bar, onde Nana se apresentava, dizendo
que aquilo tudo era uma porcaria e que o bom mesmo era Beethoven.
Algumas
cenas da biografia são dramáticas. Naquela época de sexo, drogas e
bossa nova, Roniquito se meteu com cocaína. Certo dia, após um
escândalo sem propósito e um flagrante mal escondido, acabou
comprometendo sua irmã, que foi presa por porte da droga. O bêbado
ainda foi até a delegacia dizer que o culpado era ele, mas não
adiantou. Scarlet passou três meses e meio encarcerada. Barra
pesadíssima. Taí um vexame difícil de esquecer.
A última do Roniquito
A
fase áurea da sua vida boêmia se passou em plena ditadura militar.
Ele nunca foi preso porque circulava bem nas rodas de poderosos,
embora, dizem, destratasse até mesmo os oficiais. Em seu livro “Ela
é Carioca”, Ruy Castro conta que nos idos de 67, Roniquito estava
bêbado no Museu de Arte Moderna, quando entrou o general Costa e
Silva e seu séqüito para almoçar. A comitiva presidencial passou
justamente na hora em que ele procurava um isqueiro no paletó para
acender seu cigarro. Segue o Ruy: “Com o cigarro no canto da boca,
Roniquito viu o presidente. Avançou, cravou o queixo nas medalhas de
Costa e Silva e perguntou: 'O senhor tem fogo?’. Os seguranças,
como que subitamente acordados de um rigor mortis, pularam sobre
ele”. O tipo foi abotoado mas não chegou a ir em cana.
Quando
aprontava além da conta, Jaguar lembra que ele era expulso do
Antônio’s por um tempo, e ficava de castigo bebendo no boteco
vizinho. Numa destas, embriagado e sozinho, foi atravessar a rua e
acabou pego por um fusca em alta velocidade. O motorista foi embora
sem prestar socorro. Um ônibus que vinha atrás o levou para o
hospital Miguel Couto, onde foi operado para reconstituir o rosto, a
perna e outros pedaços do corpo. Em frangalhos na maca, teve fôlego
apenas para pedir uma vodka para a enfermeira.
Depois
disto Roniquito nunca mais foi o mesmo. Vivia de muletas, se
automedicava e continuou bebendo. Morreu em janeiro de 83, com 45
anos de idade. “Muito moço”, concordaram os jornais da época.
Podia ter sido um intelectual de sucesso. Não foi, vivia de porre,
mas ainda assim gozou da amizade de muita gente com talento e poder,
e sempre que possível jogou merda no ventilador. Um herói. “É um
mistério, morremos de saudade de um sujeito que vivia nos
esculhambando”, arremata Jaguar.
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