por Xico Sá
Eu poderia começar assim: léxico é poder. Por exemplo: onde se lê reorganização, leia-se fechamento de escola. Vê como muda a vida. Por que repetir o release do Palácio (seja qual for) e escrever como o mandante quer?
É hora de falar da festa da firma. Só o varejão da existência salva.
Acabei de chegar da minha primeira este ano. Como foi linda. Com karaokê
e tudo. O sorriso da menina que cantou “Evidências” era um sorriso
capaz de fazer funcionar mil lâmpadas no juízo final sem hidrelétricas.
“Quando eu digo que deixei de te amar/É porque eu te amo/Quando eu
digo que não quero mais você/É porque eu te quero/Eu tenho medo de te
dar meu coração/E confessar que eu estou em tuas mãos/Mas não posso
imaginar/O que vai ser de mim/Se eu te perder um dia...”
Desde a minha primeira carteira assinada, na Mesbla, Recife, amo a
festa da firma. O dia em que Dionísio dá as cartas, pensemos assim para
tudo ficar mais bonito. O dia em que o office-boy bota um rabo de papel
no poderoso chefão, a fantasia possível do baile. O dia em que o tímido
rapaz do almoxarifado se engraça com a mina metida e pequena autoridade
do RH –a mesma que um dia de crise pode cortá-lo. Corta.
A festa da firma desmantela a hierarquia por uma noite. Isso já é
lindo. A ilusão na máquina moderna de moer gente. A festa da firma é uma
piada de Zizek.
Melhor ainda: a ressaca moral da festa da firma.
Você fez não uma merda qualquer com um amigo ou amiga de boteco. Você
fez uma merda com a diretoria. Isso é lindo. Delito por bailar el
chachachá. Só e tão-somente neste dia é possível e não passível de
demissão. É ou não é um grande dia?
A classe operária jamais irá ao paraíso, todavia, na festa da firma, é
o dia de fazer um chifrinho na foto por trás da cabeçorra do gerente.
Panaca. A festa da firma não é luta de classes, afinal de contas ser
babaca não é privilégio de quem manda. A festa da firma é apenas uma
chance de tirar onda de baixo para cima.
Lembro da festa da Mesbla. Um altão brancão de sobrenome Paz, a quem
agradeço, foi quem me deu o emprego em um Brasil de 30% de
desempregados. Pense numa crise de fato! A sorte de ser um bom
datilógrafo me rendeu o posto no departamento de crediário. Batia mil
fichas por minuto. E não é que botei um rabo de papel no Paz, rapaz?! Só
para me amostrar para uma moça no único dia que sai da minha matutice
para lá de metafísica sertões adentro. Quem me deu esse poder? A festa
da firma.
Amo festa de firma por essas e por outras. Agora reconto tudo de
novo, afinal de contas ninguém nos ouve nesse mundo. Tudo é inédito na
era da ansiedade da informação. Daí que eu repito, na autorreciclagem
permanente do cronista, o que um dia falei sobre festa de firma.
Festa de firma. Tédio para uns, celebração dionisíaca para outros.
Fim de ano, aquela animação, aquele queijo coalhado no juízo, nervos à
flor da pele, a vida assim meio Roberto Carlos, meio Almodóvar, meio
Nelson Rodrigues, enfim, a vida simples, brega como ela é, a vida sem
mistificação ou assepsia, a vida que não lava as mãos à toa.
Alguém querendo bater no chefe que o humilhou o ano inteiro, alguém querendo comer a gostosa do telemarketing.
O cenário certo, na graduação alcoólica certa, na boca-livre perfeita
para um elemento cometer alguma desgraça ou crime de primeira página,
seis colunas, manchete. Com direito a story-board.
Festa de firma. Pequenas histórias acumuladas o ano inteiro. Alguém sempre jurado de morte.
Tanto no terreno amoroso como na violência física de fato, tentando
tirar na base da ignorância a mais-valia de uma vida inteira.
O acerto de contas.
Todo cuidado é pouco, caros bebedores amadores, com a festa da firma. Falo sério.
A melhor cena que vi foi numa farra do “Notícias Populares”, o
glorioso e sanguinolento “NP”, de saudosa memória, que bateu as botas
gutenberguianas como os presuntos que exibia em suas páginas.
Imaginem uma linda e desgostosa (com o marido canalha!) secretária.
Pensaram?
Terceira caipirinha. De alguma fruta exótica. Toda gostosa adora uma novidade.
Música, maestro.
Toca uma faixa capaz de fazer de uma madre superiora uma Madonna,
capaz de fazer de qualquer entrevado um Elvis, um Elvis em Acapulco
cantando na beira da piscina do Hilton Palace .
Toca algo assim como aquele “chabadabadá” da trilha de “Un Homme et
Une Femme”, filme das antigas, “Um Homem, uma Mulher”, de Claude
Lelouch, grande película.
Quarta caipirinha.
O chão é pouco para os passos da pecadora.
Ela sobe numa mesa.
Antes, beijara na boca, sem discriminação de classe, do diretor ao
contínuo. Eu, um reles cronista folhetinesco daquele diário, também
locupletei-me, claro, mas meio tímido, juro.
Quinta caipirinha.
A blusa não resistiu ao primeiro gole. O sutiã foi parar na cabeça do tiozionho do arquivo.
Sexta caipirinha acompanhada de uma cerveja mexicana: foi-se quase tudo. Belas saboneteiras, omoplatas geniais, observei.
Coube ao marido -a quem mais caberia?- enquadrar a “vadia”, como ele
berrava sem economizar nas exclamações! Chegou para apanhá-la e acabou
testemunhando o que não queria.
A festa acabou. E agora, José, fica ai o alerta: não há inocentes em
uma festa de firma. Numa festa de firma, o mais tímido e sonso dos
mortais dubla Carmem Miranda e passa a mão na bunda do chefe, só pra
quebrar a hierarquia pelo seu ponto mais, digamos assim, inviolável e
machista.
Xico Sá,
escritor e jornalista, é autor de “Os Machões Dançaram –crônicas de
amor e sexo em tempos de homens vacilões” (editora Record), entre outros
15 livros.
Obs: Desde que este blog começou ele autoriza que publiquemos seus textos sobre boemia.
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